sexta-feira, 7 de novembro de 2008

Senhor Fernando

nem sequer caibo em mim de amor
nem sequer caibo em mim de tristeza
nem sequer caibo no meu corpo
nem o meu corpo cabe em ninguém
e há obrigações para cumprir
e hoje não posso beber vinho tinto
e há uma felicidade absurda melancólica sádica alimentada na tristeza dos outros
porque me fazem sentir sentida
porque me dão o sentimento de compaixão
que é lindo não digam que é feio
e é já difícil encontrá-lo
porque andamos todos meio burros meio adormecidos meio perdidos
nos caminhos de volta para casa
não vejo migalhas
e há um sufoco no peito que não chega a ser choro
e pergunto-me onde raio vou buscar tanta coisa
que eu sou tão pequena e não pedi para viver
e quero ficar assim
e quero ficar sozinha e quero ficar muito sozinha
ou então quero passear nua pela rua
porque não há corpo que caiba no meu corpo
e nem se quer quero partilhar
porque estou egoísta e hoje fui tocada por Deus
e sinto-me mais alta
triste mas mais alta
não te aproximes
nem ouses aproximar-te
que sou capaz de te dar um estalo tão apaixonado que te mato para sempre
deixa-me em paz ou dá-me guerra
a senhora tem mais de oitenta anos
as costas rotas e os braços pesados
vai para casa com uma placa nova
mas não vai feliz
ou não estivesse ela à espera do 35
falta-lhe o marido que era muito bom
e morreu na cama debaixo da cruz
mudo e hirto mas consciente nos olhos
a senhora faz-se feliz por falar comigo
pensa que sou um anjo que desceu à paragem de autocarro
para lhe desejar felicidades
pensa a senhora que os filhos dela não a amam
fala com o da figueira no aniversário dele e no natal de todos
telefona-lhe dos correios porque não tem telefone na casa do morto
e os filhos não lhe enviam cartas porque não gostam de escrever
ponho assim o meu coração dentro do dos outros
e viajo como se fosse o saco de porrada do mundo
voluntariamente entenda-se
e depois há crianças que têm depressões com seis anos
e dizem que são feias e que se vão matar
e os pais bebem muito álcool e até querem ajudar mas não sabem como
porque já morreram antes de ter os filhos
e a segurança social
não segura nem procura nem abraça pais nem filhos nem avós
e depois não há duas mãos que possam fazer alguma coisa
e nós até vamos esquecendo
e fingindo que não é nada connosco
e vamos a concertos muito bonitos
e exposições muito interessantes e muito metafísicas
eu até tirava o dia para dar abraços e chapadas
mas tenho de pagar impostos
para o caso de vir a fazer um filho e ter de lhe dar papa cerelac
também podia tapar os buracos
das estradas de Portugal que estão muito usadas
e como as pessoas gostam de ser porcas
deitam os seus lixos no chão
para as ruas ficarem muito bonitas
e nós sorrimos ao passar nelas
com uma felicidade estonteante
que nos dá um mundo que só pode ser perfeito
e o pior é que ainda assim tenho a ousadia desumana de pensar muito em sexo.

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